Instituto do Cérebro da UFRN participa de cirurgia pioneira no tratamento da epilepsia

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No último dia 20 de junho, o neurocientista Sergio Neuenschwander, médico de formação e professor do Instituto do Cérebro (ICe/UFRN), integrou a equipe de Osvaldo Vilela Filho, chefe do serviço de Neurocirurgia do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC-UFG/Ebserh) e professor da Faculdade de Medicina da UFG, na segunda de uma série de cirurgias de caráter experimental voltadas ao tratamento da epilepsia focal. Essa é a segunda vez que Osvaldo lidera um time de especialistas na realização do procedimento, único no mundo a abordar um núcleo específico do tálamo ligado à visão, o geniculado lateral, objeto de estudo do professor da UFRN há 30 anos.

A pesquisa de Osvaldo Vilela Filho tem como objetivo tratar de uma categoria pouco comum de epilepsia e aborda um núcleo talâmico até então estudado do ponto de vista eletrofisiológico somente em animais. Nesta segunda cirurgia do tipo, Vilela Filho contou com pesquisadores que o ajudaram a aprimorar a técnica aplicada: além de Sergio Neuenschwander, os neurocientistas Pieter Roelfsema e Matthew Self, do holandês Netherlands Institute for Neuroscience, vieram ao Brasil apenas para participar do estudo.

De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a epilepsia é uma doença que afeta cerca de 50 milhões de pessoas no mundo e consiste em uma atividade elétrica anormal no cérebro. “É como se ocorresse um curto-circuito, e isso disparasse para várias regiões do cérebro. E aí tem-se as manifestações clínicas da epilepsia, que são as crises convulsivas”, explica Vilela.

Tais crises podem ser focais ou generalizadas. Quando esse curto-circuito ocorre em um ponto específico do cérebro, a crise é focal. Quando acontece nos dois hemisférios cerebrais ou em alguma estrutura cerebral profunda, espalhando-se por todo o órgão, ela é chamada de generalizada e normalmente é acompanhada de perda da consciência. As crises focais ainda se classificam em disperceptivas e perceptivas. Nas disperceptivas, ocorre comprometimento parcial da consciência, e a pessoa não consegue se lembrar do que aconteceu naquele momento — embora para aqueles que estão em volta ela esteja acordada.

“Já as perceptivas são aquelas que ocorrem de forma muito localizada. Por exemplo: esse transtorno pode ocorrer numa área do cérebro responsável pelo movimento, então a pessoa tem abalos musculares, que podem ser muito localizados, como na face, na mão ou nos pés; ou pode ser na área do cérebro responsável pela sensibilidade. Neste caso, a pessoa tem formigamentos ou dormências nessas áreas específicas do corpo também; ou elas podem ocorrer, por exemplo, quando o foco é na área da visão. Aí a pessoa vê manchas num campo da visão, seja no campo esquerdo ou no campo direito. Essas são as crises focais visuais, como no caso do nosso paciente”, detalha o professor da UFG.

Mas, para chegar até ao paciente do estudo, precisamos voltar para o momento que levou Vilela a levantar a hipótese que viraria essa pesquisa. Em 2011, durante a cirurgia de um outro paciente, que sofria com crises focais motoras, o professor e sua equipe perceberam, enquanto avaliavam a região de implantação do eletrodo, que havia resposta numa estrutura ao redor: o núcleo motor do tálamo. A cirurgia foi interrompida, e a equipe conversou com o paciente e seus pais, que permitiram implantar o eletrodo naquele local, algo não previsto anteriormente.

“Esse paciente teve uma melhora de 88% das crises focais motoras. Foi baseado nesse caso que nós imaginamos: bom, se o núcleo motor do tálamo se projeta para o córtex motor, nós temos no tálamo um núcleo sensitivo, que projeta-se para o córtex sensitivo; nós temos um núcleo visual, que é o geniculado lateral, que projeta para o córtex visual; nós temos um núcleo auditivo, que é o geniculado medial, que projeta para a área auditiva. Então, nós imaginamos: deve ser possível implantar eletrodos nessa localização para coibir o foco epiléptico em várias regiões do córtex cerebral. Foi assim que nasceu a ideia”, conta. A primeira cirurgia da pesquisa foi realizada há dois anos, e a paciente, que sofria de epilepsia focal visual, teve uma melhora de 97% na frequência das crises após a operação.

A cirurgia do dia 20 de junho durou 15 horas e foi realizada com o paciente acordado sob anestesia local e com uma única abertura no crânio, por meio da qual se chega ao ponto no tálamo em que será posicionado o eletrodo. Neuenschwander, Roelfsema e Self atuaram na localização desse ponto, aplicando uma série de testes relacionados à percepção e à atenção visual. Ao mesmo tempo, foram realizados registros eletroencefalográficos do córtex.

O eletrodo inserido no cérebro do paciente está ligado a um marcapasso, a ser acionado em breve. É esse equipamento o responsável por gerar os pulsos para o cérebro. Depois disso, serão realizados testes para definir a frequência de estimulação do eletrodo. Pode levar de dias a meses para se estabelecer os melhores parâmetros de estimulação para o controle das crises.

A participação do trio de neurocientistas trouxe uma contribuição de mão dupla para o estudo. “Os testes empregados na cirurgia da paciente anterior não eram tão sofisticados e não permitiam que identificássemos exatamente qual localização do núcleo geniculado lateral estava envolvida nas respostas obtidas durante a cirurgia”, comenta Vilela.

“Conhecemos muito o geniculado lateral, mas claro que esses estudos foram todos feitos em modelos experimentais, principalmente em macacos e gatos e mais recentemente num camundongo. Então esta foi uma oportunidade única para observar em um ser humano uma estrutura tão importante, porque no macaco a gente conhece. Não necessariamente o mundo dos nossos modelos experimentais em animais se generaliza para o ser humano. Outra coisa: a pessoa, porque está ali acordada, te informa sobre as sensações e a percepção. Já com o macaco são inferências muito difíceis de se conseguir”, explica Sergio Neuenschwander.

Para além do tratamento da epilepsia focal perceptiva, a técnica abre outras possibilidades de aplicação. “É possível que possa atender a outras epilepsias, dependendo de mais estudos, porque afinal esses são dois casos. Mas, de qualquer maneira, o tratamento proposto é muito inovador. É algo inédito. E também contribui para saber como a estimulação elétrica do tálamo, de forma geral, pode alterar a atividade basal ou mesmo comandada do córtex visual. Isso seria muito interessante de se aprender, porque essa não é uma ativação qualquer, é uma ativação repetida que pode levar a neuroplasticidade”, comenta Sergio.

Vilela Filho se mostra otimista com as perspectivas abertas pela técnica. “O fato de a gente mostrar que o corpo geniculado lateral pode ser abordado de forma segura nos seres humanos abre espaço para uma coisa que o Sergio está mais capacitado do que eu pra responder sobre o desenvolvimento de próteses visuais”, conta. “Uma proposta, inclusive defendida pelo Pieter [Roelfsema], é usar fosfenos [sensações visuais brilhantes] para construir objetos visuais ponto a ponto, como letras, que sejam minimamente relevantes para pessoas cegas. Você poderia então construir uma visão mínima e útil para pessoas cegas baseada na estimulação elétrica de baixa intensidade do córtex visual”, explica Neuenschwander.

A cirurgia realizada na UFG demonstra a importância da pesquisa no desenvolvimento de novas terapias. Para Sergio Neuenschwander, como neurocientista, “a cirurgia não é uma coisa que a gente tenha toda hora, porque ciência básica nem sempre é um conhecimento que leva a aplicações diretas. Ali tudo parecia fazer sentido, mesmo que mais uma vez existam mais perguntas do que respostas em volta do problema e do tratamento”. Como neurocirurgião e pesquisador, Osvaldo Vilela Filho acredita que todas as pesquisas são importantes, “mas as chamadas de translacionais, em que aquilo que a gente observa no animal se consegue inferir no ser humano, são as mais importantes de todas, pois têm aplicabilidade a um prazo bem menor do que outras puramente básicas”, pontua.

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